sexta-feira, 3 de junho de 2011

VIA CRUCIS


Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada...

F. Pessoa

Por que há alguma coisa em vez do nada?

Leibniz

Todos têm certa predisposição à loucura. Ele não conseguia se desvencilhar da opaca imagem que invadia sua mente naquela tarde de verão. Olhos ziguezagueando em órbitas distantes, um escondido tique nervoso que resolve importunar quando menos se espera, palavras desconexas como grunhidos de animal primitivo que fora no princípio. Tudo estava emaranhado em sua memória e, a partir daquele torturante momento, resolvera habitar seu minúsculo apartamento e se espalhar, como uma teia pecaminosa, por todos os recantos da cidade. Inflamava as massas, bem sabia. Confundia-se no sorriso maroto da criança de colo. Driblava o vento sorrateiro – advento de águas torrenciais – para se esconder em saias destemidas e tentadoras.

Deitado no canto mais escuro da sala de estar fitava, como o leão a espreitar sua presa, a fugidia lembrança do desespero no qual sua pobre carcaça (não poderia conceber uma alma, piamente cria) se encarcerou. Riu alto para talvez espantar o princípio de sua temerosa perda de sentido. Tateava a parede branca e velha, errando à procura da segunda e derradeira chance de traduzir o vazio que o preenchia e incomodava como um vômito nas premências de vir a ser.

Concluir que a derrota é o único caminho seria fácil demais, ele sabiamente desconfiava. Encaminhou-se trôpego para a sacada do apartamento e, num lampejo de ingenuidade, deixou a luz confusa que banhava os prédios tortos e cinzentos invadir seu olhar. Naquele instante, teve medo. Passagens longínquas bailavam sob o céu, como um apocalipse imanente e sem sombras de salvação. Primeira surra no colegial, último beijo apaixonado, certos acenos das férias infernais no interior, conflitos intermináveis na repartição pública, sorrisos, olhares, prazeres, ranger de dentes. Aquilo tudo exposto em nuvens que, em breve, tornar-se-iam pancadas de chuva. It’s raining cats and dogs, certamente ouviu em algum lugar.

Correu para cozinha e procurou algo forte para enfiar goela abaixo. Bebe tu teu próprio veneno, como tantas vezes recitou, obrigado, no colégio católico da juventude.

Matheus Pazos.

Crédito da imagem: Ocean Greyness, de Jackson Pollock - extraído de http://serurbano.wordpress.com/2008/09/09/jackson-pollock/