quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Joyceanas I


Remexe para todos os lados, sacudidela do diabo, mormaço insuportável, cadeira com defeito, gente de mau humor. Preocupações mil na mente, patroa irritante que a espera com intermináveis reclamações, e aquele velho desejo de voltar para a Bahia...ah, mainha, o que eu tô caçando aqui?

Sente vergonha de olhar as pessoas de frente, fugindo da triste constatação de se perceber animalesca, rastejando por um lugar ao disputado Sol. Esconde as marcas de trabalho, mas não consegue camuflar o cheiro enojante de água sanitária que, ironicamente, lava a podridão das vestimentas de sua vil patroa, manchando seu destino de exilada...oxi, maninha, num tem mais daquela lavanda?

Emaranha-se numa paixão passageira, esquecendo-se e deixando dominar-se nos braços fortes de um pobre coitado que, gradativamente, vai perdendo seu sorriso, sotaque e sonhos...ô dengo, bebe mais não, fica aqui comigo?

Não consegue balbuciar uma oração, porque Jesus, Nosso Senhor, é propriedade de igrejas portentosas e demasiado rígidas pra seu cristianismo primitivo e vulgar. Sente o peito amargurado e oco, desprovido que é de toda transcendência ou desígnio salvífico... vó Maria, reza uma novena pra Nossa Senhora das Cabeça, reza?

Sabe que vai morrer assim: sem chão, sem pátria, olhando de soslaio os sonhos se distanciarem. Perdeu a esperança, a gana da vitória e o desejo de sorrir. É mais uma, entre tantas, que carrega o peso de não ser merda nenhuma e, tristemente, dá-se conta disso a todo momento. Sem nome, sem rosto, sem corpo, sem expectativa, sem origens, sem identidade, sem fé, sem qualificação, sem cultura, sem...

- Amiga, sabe aquela minha empregada?

- Lembro-me vagamente.

- Ligaram avisando que se matou antes de ontem.

- Mesmo?

- Sim...Horrível isso. Afinal, quem vai arrumar a casa para a festa de hoje à noite?

- Nossa, e agora?

- Vou ter que correr atrás de outra... Sabe, te confesso uma coisa: aquelazinha nunca me enganou...




Matheus, mais um exilado.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Se eu fosse Deus


Se eu fosse Deus, acabaria com a mediocridade do mundo. Explodiria toda tentativa de certeza escondida no desejo humano de estagnar-se. Construiria uma ponte entre as relações cambaleantes dos que, céticos (ou medrosos), procuram matar o amor ou transmudar este infinito sentimento em meros gestos de formalidade. Colocaria o sorriso no rosto da bailarina derrotada pelos jurados e daria voz ao estudante gago que fracassou nos exames finais. Impulsionaria o velho a aprender o idioma mais difícil da Terra e faria do abraço o gesto universal do reconhecimento verdadeiro de fraternidade e paz. Se eu fosse o Todo-Poderoso, pularia carnaval com os bêbados e viciados e, talvez, burlaria as regras, só para provar que o mal traçado também tem sua razão de existir. Andaria com os poetas loucos e faria deles, e só deles, meus autênticos pregadores. Vestiria o traje de festa para seduzir os coxos e maculados, afinal as máscaras não têm sentido quando se apreende o sentido último do viver. Enfim, abdicaria de minha função de juiz e, como criança, aprenderia que nada sou sem os outros, sobretudo sem aqueles que não dão a mínima para meus sonhos e dúvidas.